Num toque suave de piano

Num toque suave de piano.
Um pincel percorre uma tela em busca de uma figura ainda pouco definida pelo seu criador.
Melodia suave caminha pelo quadro repleto de azul.
Uma forma surge com o vaguear dos tons graves e agudos do piano.
A mão do criador agarra o pincel e definha contornos estranhos, abcessos, redondos sobre a tela que se queixa de imperfeição.
Melodia e pincelada desencontram-se. Harmonia que não consegue fundir-se com a violência das formas agrestes de um pincel sobre uma tela azul e que desperta para a vida um agressivo e demoníaco corpo de mulher.

Fragmentos

Olho o retrato que tu não me deste
Recordo os momentos que me arrancaste
Releio as cartas que te marcaram
E apenas resta, cá dentro
Um fragmento

De um ser, de um parecer
De uma luta que acabei por perder
De um sonho que me tiraste por querer
Um sonho que também era teu.

Revejo-te, vezes sem conta, por aí.
Trocamos palavras,
Gestos forçados que não se dão
Olhares que se tocam entre a multidão
Eu não te esqueci.

A mais bela poesia
Que aguarda em silêncio
Frangmentos de um ser ou não ser disperso no tempo
Detalhes que ficam guardados cá dentro
E até tu voltares, enfim,
Apenas restam... Fragmentos... de mim.

Sopro de voz

Na magia do desconhecido, nada o fazia prever.
Dois estranhos, uma amiga comum, uma fase incomum. Para os dois.
Para tudo, ou quase tudo, a primeira vez.
Uma conversa virtual e outra e logo outra. O sobressalto perante tanta frontalidade acerca de um assunto tão marcante, tão marcado, proibido, até. Retracção.
Mensagens trocadas e um telefonema de um mistério surge. Olha para o telefone móvel, que descansa em cima da bancada americana, na cozinha, sorri e, numa fracção de segundo, pensa em tudo e atende.
Uma voz quieta, suave, tranquila, no entanto sensual, quente, inebriante, ancora no seu ouvido. Rendida a tal timbre, o diálogo vai-se compondo, preenchido com pequenos silêncios de análise mútua, revezando-se com elogios sinceros, corteses, partilha de histórias breves, mas tão longas, tão demasiado longas, na sua substância.
O desconhecido abre as suas portas imateriais para o que viria a ser uma experiência inusitada. Adivinha os seus medos em poucas palavras, entende os seus segredos naquele ligeiro toque de voz.
Voz que se desdobra no invisível, toca tenuemente e faz enlear a sua disfonia num tom raramente calmo, mas sempre calmo perante esta voz.
Um contacto mais próximo surge, sem premeditação e sem apresentações externas. Sorrisos e a emoção característica do inesperado.
As conversas escritas tornam-se mais frequentes a última coisa que se pensou, acontece, numa infinitude de horas telefónicas
Numa noite cósmica, sob o tom envolvente das constelações, duas vozes fundem-se pela impossibilidade maior de retardar a sua ligação, união química e singular. Superiores à força da vida mundana, duas vozes ofereceram-se à existência que apenas aquelas duas vozes poderiam dar e receber naquele instante.
Cumplicidade, musicalidade, transparência, partilha.
Fica a saudade permanente entre a pele das duas vozes, atadas por um sopro ténue e sublime.
Ancoram ocasionalmente uma na outra, em registos díspares, mas o tom é sempre suave, meigo, porém quente e inebriante. Afeiçoam-se momentaneamente ao escutarem-se.

Uma voz silencia-se, outra regressa ao lar, com a certeza de que voltarão a enlear-se, tranquilamente, no sopro de um novo diálogo.

Maturidade


Pensamentos partilhados, conversas interrompidas por silêncios desconfortáveis perante o confronto.Palavras por dizer. Acções por concretizar.
Decisões tomadas no silêncio da tua ausência. História enterrada na areia de uma praia distante, para entrar leve no ano de todas as mudanças.
 
A necessidade de normalidade. Fácil de entender.

É o fim. O decisivo fim do qual nem o início nem o desenrolar conseguimos descortinar, entender. Será que algum dia iremos perceber tudo isto que se passou ou o que nos liga verdadeiramente?

O fim. A tristeza de um fim necessário para que as vidas prossigam a sua rotina, sem atropelos. O fim sem vontade de acabar. O final de uma coisa que não sabemos explicar, obrigado a controlar, por mais tempo que passe.
Resta-nos lembrar os momentos, as conversas. Apenas isso poderemos guardar, sem risco de serem, de dentro de nós, roubados.

A tristeza com lágrimas. Decisão convicta como nunca antes. Maturidade, disseste. Tristeza madura, que secou o pranto, que o mar levou naquela madrugada cheia de estrelas e na qual a lua, propositadamente, brilhou tanto como brilhava em todos os nossos encontros, iluminando todo o negro céu. Para que eu não esquecesse. Para que te lembrasse.

Durante algum tempo, habitaste o meu pensamento, não conseguia tirar os olhos dos teus, mesmo quando não estavas comigo. Era confuso, estranho. Muito estranho. Por ser contigo.
Apesar de continuar a sentir que uma parte de ti me pertence. Talvez o teu mais verdadeiro Eu seja um bocadinho meu, também. Anos de partilha, centenas de palavras escritas, revelações, apoio mútuo, ajuda, situações conversadas, momentos intocáveis, que apenas poderei perpectuar em linhas escritas, como estas.

Não foi paixão ou amor. Não fora dos nossos momentos. Aí sim, todos os sentimentos mais nobres, mais simples, selvagens, mais bonitos, vinham à tona. Mas só aí. Agora tenho, disso, a certeza. Um Amor apenas materializável quando os nossos rostos e os nossos corpos se fundiam, apenas num abraço ou num beijo, mesmo que não tirássemos a roupa. Até sem despirmos, a fusão era inacreditável! Não consigo deixar de me espantar com tamanha beleza...
 
Tudo o resto foram confusões, resquícios do reencontro de um companheiro antigo, congelado num passado, que a alma agora reconheceu.

O fim pela necessidade do reinício. O fim de todos os finais para que a vida se revire e traga uns olhos, um corpo que possa, finalmente, viver e desfrutar.

Apenas permanece o medo de que, quanto mais tempo afastados, maior a saudade e mais forte, explosivo, seja um inevitável reencontro futuro. Estaremos iguais? Estarás igual? E eu, estarei igual? Se o tempo intensificou o que sempre existiu, se o tempo fez crescer a ligação, como será daqui para a frente a ausência provocada pelo afastamento, pela primeira vez, forçado? Como será continuar, agora, no silêncio? Como e onde ficará a nossa amizade?

A energia que emana dos nossos corpos, das nossas almas, para o exterior, que se sente no ar, que se respira, que se cheira, extinguir-se-à em algum momento da nossa existência actual?

O tempo. O que fará o tempo por nós? Esquecer-nos-à? Fará com que nos esqueçamos um do outro?

O fim. Um fim que não se quer. Um fim, mas não um fim qualquer. O culminar de um ciclo que se fecha por necessidade, com alguma dficuldade, com uma inevitável e, talvez, surpreendente dor. Que se encerra, não por ser melhor assim, mas por ser a única forma de continuar a viver.

Gostava de poder pintar-te um dia

Gostava de poder pintar-te um dia... Gostava de pintar tudo o que vejo e não apenas o que sinto. Mas tu, especialmente. Deve ser para poder guardar-te para sempre.
Mas não encontro o jeito para pintar rostos ou corpos.

Quando tento, saem sempre deformados, ou estranhos, ou imperfeitos. Para pintar-te, teria de conhecer todos os traços do teu rosto, todos os contornos do teu corpo.

Para poder pintar-te, tinhas de te mostrar inteiro para mim, para que nenhum pormenor me escapasse.
Gostava de poder pintar-te um dia, mas ainda não lhe colhi o jeito. Por enquanto, apenas posso pintar-te com palavras. É que assim, é muito mais fácil. A capacidade de pô-las numa figura, só terei quando puder olhar-te fixa e profundamente, a cada dia, sem medo, nos olhos, sem que desvies o olhar.

Essa perícia só surgirá com a tua ajuda, quando quiseres ser o meu modelo de eleição, que eu possa contemplar de dia e de noite, sem que me fujas.

Se não for assim, nunca poderei fixar as linhas do teu rosto ou os traços do teu corpo.

Gostava de poder pintar-te um dia, para, quem sabe, guardar-te para sempre.

Aquele bar


Não chovia. O sol desaparecia no céu, embora desperto, embora fosse Inverno.
Cheguei, e tu já lá estavas. Como sempre. Sentado num banco de madeira escura, ao fundo das escadas, virado para o mar. Como sempre. Embora com as costas de frente para mim, viste-me chegar.

Eu, imóvel ao cimo da escadaria, contemplava o horizonte encoberto, onde ansiava estar, para me perder, para me soltar em toda a existência daquela paisagem que me era oferecida por uma natureza tornada viva, com o embater da água nas rochas, pintando o céu. Vi-te. A tua boca abriu-se num sorriso e a tua mão tacteou insistentemente no banco escuro em que te sentavas, como um convite a descer. Sorri, em resposta.

Desci. Estava já perto de ti. Conversámos o que nunca imaginámos. Muito ficou por dizer.

Olhámos à direita e o dia caía suavemente, contrariado. Do lado esquerdo, o céu permanecia azul. Escuro. Passaram pássaros, voando sobre nós, perdidos em bandos, sós. Eu não conseguia distinguir umas das outras. Mas tu conseguias. Como sempre. Ensinaste-me os seus nomes e como voavam. Soube, finalmente, diferenciá-las e o meu olhar perdeu-se nessa magia de pairar sobre os corpos terrenos, sob os espíritos supremos.

Contei-te sobre os meus anseios, as minhas vontades e as minhas mais profundas ambições. Senti-me serena.

Enquanto o dia se desmanchava, formava-se sobre nós uma tela imaculada e singular, onde o sol tornava o céu ocre e as nuvens o transformavam em dia e, simultaneamente, noite. Tudo se fortalecia em mim. Tudo em sonho. Tudo é afecto. Tudo é paixão. Tudo é segredo. Tudo em segredo.

Encontre a sua própria história

Várias Vidas
SINOPSE

Várias Vidas, é um livro recheado de histórias reais, de encontros e desencontros entre pessoas diferentes e pessoas iguais. As várias vidas de mulheres e de homens que conheço. As mentiras, as verdades. As duplas vidas, os círculos de vidas onde tantos se encontram e desencontram, numa sociedade em crescente decadência. Encontre a história da sua vida. - Maria João Almeida.

Lover - Parte I

Não venhas até às escadas, pensei, enquanto saía de casa para te encontrar. Não espreites. Não vás à janela. Fica, apenas, à minha espera, que chegarei à tua porta.

Com a música bem alta ao longo do caminho, nervosa, como se fosse a primeira vez que te fosse ver. Como se fosse um primeiro date. Mas não era. Já perdi a conta das vezes que nos envolvemos. E é cada vez melhor. É cada vez mais perigoso.

Pelo caminho, sorria, ria muito sozinha. Estava radiante, mesmo sem saber o que me esperava. O que nos esperava. Somente o saber como me sinto a cada e de todas as vezes que estamos juntos. A harmonia, a beleza, os rituais só nossos, mas antigos, que o tempo não esqueceu. (...)

integralmente em breve, no livro: "Várias Vidas Short Stories 1995-2005"