Raios de vento

Raios e rasgos de vento pairam nas palhas
acastanhadas que me cobrem a mente
Fumo. Fujo da realidade que me
acompanha no dia-a-dia e escrevo, pinto, nasço, cresço.
Vivo o meu amor,
deixo morrer à sede o surgimeto da minha dor e refugio-me neste baile parado,
abraço-me ao colo de um bebé, acabado de nascer.
Molho a cabeça à
velocidade das gotas de chuva que caem no jardim
Flores, folhas abanam e
dançam suavemente, como que mostrando que a vida tem um novo começo, um renascer
a cada dia.
Mesmo quando o sol acorda sem brilhar.

 
 

Turning the page - parte 4

E nunca se torna uma perda de tempo. Enriquece-nos. Os ganhos, as perdas, porque estas são muitas vezes ganhos maiores.

Após o turbilhão, regressa a serenidade. Aceitamos e aprendemos a respeitar os outros nas suas próprias imperfeições, nas suas próprias falências, nas suas próprias limitações. Não esquecemos os momentos, apenas aprendemos a viver sem eles. Aprendemos a não esperar mais, a não querer mais.

Percebemos que apenas tínhamos a aprender aquilo que tínhamos para aprender com alguém e nada mais. Fazemos tudo o que podemos, mas quando não depende exclusivamente de nós, apenas podemos fazer a nossa parte. E é aí que muitas vezes as surpresas surgem e olhamos melhor para quem está e sempre esteve perto. Agradeçamos a quem teve o condão de mudar, transformar a nossa vida. A maior parte das vezes não é o próprio que tira o partido do bem que conseguiu fazer.

Alguém me proferiu, um dia, sabiamente, estas palavras "nem sempre a vida pode ser como nós queremos que ela seja", mas como diz a música, se tentarmos arduamente, podemos até conseguir que ela seja como precisamos que ela seja e, quem sabe, um dia, ela chegue mesmo a ser como nós desejamos, com quem desejamos.

Turning the page - parte 3

Aceitamos que apesar de todos os pontos comuns e todos os pontos diferentes, é o ponto fundamental que nos afasta, é o ponto fulcral que não permite que as situações evoluam e resignamo-nos. Sim, de facto, resignamo-nos. Uns mais depressa que outros. Mas, é certo, a resignação chega.

É aí que os fantasmas evaporam no ar, é aí que nos apercebemos, sempre com maior força que antes, de todo o valor que temos e que têm os que estão ao nosso redor. É aí que aceitamos, finalmente as coisas. Incompletas ou não. Porque se completam por si só. Porque nos ajudam a fechar um ciclo de vida.
É aí que tudo volta a fazer sentido.

Mudamos, crescemos, evoluímos.

Agradecemos, muitas vezes em silêncio, porque não podemos, sequer, articular uma palavra, porque do outro lado a mensagem não vai passar, não vai sair valorizada, compreendida. Mas agradecemos, por dentro, mesmo assim. E colocamos o passado onde ele deve e tem de estar. E percebemos o quão privilegiados somos, só porque a vida decidiu dar-nos um presente e nós aceitámo-lo de braços abertos. Percebemos, também, que o único ponto comum de todas as nossas histórias somos nós mesmos.
E não há mudança ou evolução sem sofrimento. E quem disso se apercebe, mais facilmente encontra a plenitude, uma espécie de felicidade que apenas pode partir de dentro e nunca de factores exteriores, como um relacionamento ou um trabalho.

É ai que estamos preparados para abrir novamente os braços, que estamos preparados para experimentar, para viver, de novo, os nossos sonhos, desejos, ambições, o amor, nos seus mais variados contornos, nas suas mais variadas esferas. (continua)

Turning the page - parte 2

Porque muitas vezes passamos na vida das pessoas apenas para, numa determinada fase, as fazermos pensar, repensar, para que elas dêem um salto maior, para abrir caminho para outras pessoas que surgem ou que já estão. Muitas vezes não somos mais que um instrumento para que as pessoas acordem para outras realidades, que sempre estiveram presentes, mas nunca se haviam manifestado. E, talvez nos devamos alegrar por isso e aceitar que é assim, sem culpas, sem medo, sem erguer barreiras. Dos outros para nós, é igualmente, verdadeiro.

Constatamos que nos aproximam as semelhanças, até mesmo as diferenças, que nos enriquecemos sempre que permitimos que alguém se aproxime de nós, seja por muito ou por pouco tempo. O tempo é um conceito demasiado relativo e abstracto. As marcas ficam, senão perderia todo o sentido alguém ter remexido, ter feito nascer entusiasmo, paixão ou, muitas das vezes, alguma espécie de amor, tudo aquilo que nos parecia mais que adormecido até então.

Uma vez, alguém me dizia que "tudo na vida é pedagógico" e de facto é. Até das coisas más, das histórias que ficam, que mais não seja para nós, suspensas, devemos tentar entender a razão. No meio do turbilhão, torna-se difícil, mas quando menos esperamos, quando a acalmia retorna, as respostas surgem, sempre quando estamos preparados para recebê-las.

E aí, após algumas lágrimas, por vezes muitas, momentos de raiva, a culpa dissipa-se. Entendemos que apenas podemos ser responsáveis pelos nossos actos, pelos nossos comportamentos. Podemos até tentar chegar ao outro, mas se a resposta não chega, chega a palavra que mais sentimentos opostos me desperta. Chega, definitivamente, a resignação, a aceitação da realidade dos factos, a incontornabilidade do que está à nossa frente. Que sempre esteve.

Porque há histórias que devem permanecer mesmo assim.

Compreendemos que, embora pareça, à primeira ou à segunda vista, que nos iludimos com algumas palavras e alguns actos, a verdade é que não. Potenciámos, nós mesmos, os acontecimentos. Nós próprios precisávamos de sentir certas emoções, experimentar certos detalhes, para percebermos que ainda possuímos capacidade, que não secámos por dentro.

(continua)

Turning the page - parte 1

Redescobrirmo-nos é, porventura, a melhor forma de nos conhecermos e reconhecermos.
Quando nos sentimos rejeitados e, por natureza, somos um pouco negativos, tendencialmente culpamo-nos se algo não corre bem ou se corre mesmo mal. Questionamos tudo o que nunca questionámos dentro de nós, surgem pontos de interrogação nos locais mais desapropriados, em situações, por vezes, constrangedoras. Muitas vezes a culpa chega a ser tal, que esquecemos que outras pessoas contribuíram, igualmente, para essa falência.
Vem a tempestade, a invasão de sentimentos díspares, muitas vezes emoções e entusiasmos que julgámos não conseguir voltar a sentir, questionamos se somos ou não competentes, se somos ou não bons o suficiente para alguém nos apreciar, dar valor, respeitar e chegamos a pôr em causa a nossa maneira de ser, a nossa aparência, a nossa forma de ver e lidar com o que nos rodeia. Por vezes, por momentos, sentimo-nos inferiores ou não merecedores de uma felicidade que se abre gigantesca, mas que não conseguimos ver. Apenas porque alguém não quer a nossa companhia ou simplesmente, não pode tê-la.

Mais tarde, muitas vezes muito mais tarde, mas nunca tarde demais, depois de grandes conversas sozinhos ou com amigos fieis, por vezes acompanhadas de algum excesso de álcool, constatamos que não podemos reger o comportamento dos outros seres humanos pelos nossos próprios padrões, por muita semelhança que haja.

Muitas vezes os sinais que nos dão ou damos num determinado instante, transformam-se, naturalmente, noutros, ou porque nos assustamos, perdemos o interesse ou simplesmente, porque o que sentimos em determinados momentos foi apenas isso: emoções de momento. Tantas vezes necessárias para se crescer, para evoluir.



(continua)

Hoje apetece-me

Levanto-me da mesa num movimento brusco.
Acabo de beber três ou quatro chávenas de café, não sem bem.
O desejo por um cigarro é incontrolável.
Subo ao meu quarto alugado, abro o maço e apercebo-me que apenas um cigarro se encontra dentro dele.

Ligo a aparelhagem, pressiono o play e logo oiço a voz feminina dos Cranberries.

Saco do isqueiro sofregamente, coloco ansiosamente o derradeiro cigarro entre os lábios e, num único gesto, esquento a ponta, puxo o fumo até que atinja as profundezas dos meus já negros pulmões, saboreio-o e solto-o pausadamente.

Aberta a janela, pouso o cigarro no cinzeiro de barro preto, percorro o quarto para apagar a luz, corro novamente na direcção do cigarro que me espera, inquieto, acendo a luz exterior e saboreio um pouco mais desse objecto longo e carregado de substância viciante, por isso mesmo apetecível e desejada, que provoca momentos de êxtase.

Olho para a varanda. Vindas do céu, caem gotas ds nuvens, que descem sobre a tijoleira disposta por todo o chão.

Levanto a cabeça em direcção ao telhado. Não são apenas as nuvens ou o céu que choram. O telhado também verte lágrimas. "Estará triste?" - questiono-me.

Continuo a devorar o meu cigarro, esquecendo o mundo à minha volta, preocupando-me apenas em fixar o olhar ora no telhado, ora no chão por debaixo dos meus pés.

Com todos estes pensamentos, sinto, repentinamente, vontade de escrever. Caminho, novamente, até ao quarto, piso o seu comprimento, chegando à velha secretária de madeira escura, de onde arranco um caderno a estrear.

Pego na caneta e deambulo. Sinto vontade de escrever uma infinidade de coisas impossíveis de enumerar nesta curta folha de memória.

A páginas tantas, não sou eu quem escreve, mas a caneta que seguro na mão, conduzida pelo movimento do meu pulso e dos meus dedos e que parece já conhecer os contornos das frases, parece já conhecer de cor os meus pensamentos, a velocidade do meu cérebro, como se formam as junções de letras das palavras. Parece não querer parar.

Escrever é alimentar-me de criação, é inventar sobre coisas banais, dando-lhe uma forma sequiosa de leitura.

Hoje apetece-me criar sobre os sentimentos de um telhado triste, do meu telhado, divagar sobre a chuva, deambular acerca de uma vontade selvagem de fumar o último cigarro enterrado dentro de um maço, ridicularizar a quantidade de cafés que se bebem em menos de dez minutos, culminando num movimento brusco de puxar um banco para trás, assentar os pés no chão e voltar ao trabalho.

Enquanto a noite se vai

Enquanto a noite se vai
Pego na tela
E pincelo o mar
Como pintor

Enquanto a vida durar
Pego na guitarra

Enquanto o dia não sai
Agarro a pena
E escrevo as estrelas do céu
Como escritor

Quando a noite acabar
Pego na lembrança

Enquanto as nuvens fugirem
Enquanto os céus não se abrirem
Enquanto amantes partirem
Para outro lugar,
Neste lado da vida
Enquanto a noite se vai
Enquanto o dia não sai
Canto o meu fado.

E quando a noite acabar
Enquanto a vida durar
Eu pinto as ondas do mar

E como amante vazio
Recordo o nosso luar
Pego na saudade
E deixo-a noutro lugar.

Num toque suave de piano

Num toque suave de piano.
Um pincel percorre uma tela em busca de uma figura ainda pouco definida pelo seu criador.
Melodia suave caminha pelo quadro repleto de azul.
Uma forma surge com o vaguear dos tons graves e agudos do piano.
A mão do criador agarra o pincel e definha contornos estranhos, abcessos, redondos sobre a tela que se queixa de imperfeição.
Melodia e pincelada desencontram-se. Harmonia que não consegue fundir-se com a violência das formas agrestes de um pincel sobre uma tela azul e que desperta para a vida um agressivo e demoníaco corpo de mulher.

Fragmentos

Olho o retrato que tu não me deste
Recordo os momentos que me arrancaste
Releio as cartas que te marcaram
E apenas resta, cá dentro
Um fragmento

De um ser, de um parecer
De uma luta que acabei por perder
De um sonho que me tiraste por querer
Um sonho que também era teu.

Revejo-te, vezes sem conta, por aí.
Trocamos palavras,
Gestos forçados que não se dão
Olhares que se tocam entre a multidão
Eu não te esqueci.

A mais bela poesia
Que aguarda em silêncio
Frangmentos de um ser ou não ser disperso no tempo
Detalhes que ficam guardados cá dentro
E até tu voltares, enfim,
Apenas restam... Fragmentos... de mim.

Sopro de voz

Na magia do desconhecido, nada o fazia prever.
Dois estranhos, uma amiga comum, uma fase incomum. Para os dois.
Para tudo, ou quase tudo, a primeira vez.
Uma conversa virtual e outra e logo outra. O sobressalto perante tanta frontalidade acerca de um assunto tão marcante, tão marcado, proibido, até. Retracção.
Mensagens trocadas e um telefonema de um mistério surge. Olha para o telefone móvel, que descansa em cima da bancada americana, na cozinha, sorri e, numa fracção de segundo, pensa em tudo e atende.
Uma voz quieta, suave, tranquila, no entanto sensual, quente, inebriante, ancora no seu ouvido. Rendida a tal timbre, o diálogo vai-se compondo, preenchido com pequenos silêncios de análise mútua, revezando-se com elogios sinceros, corteses, partilha de histórias breves, mas tão longas, tão demasiado longas, na sua substância.
O desconhecido abre as suas portas imateriais para o que viria a ser uma experiência inusitada. Adivinha os seus medos em poucas palavras, entende os seus segredos naquele ligeiro toque de voz.
Voz que se desdobra no invisível, toca tenuemente e faz enlear a sua disfonia num tom raramente calmo, mas sempre calmo perante esta voz.
Um contacto mais próximo surge, sem premeditação e sem apresentações externas. Sorrisos e a emoção característica do inesperado.
As conversas escritas tornam-se mais frequentes a última coisa que se pensou, acontece, numa infinitude de horas telefónicas
Numa noite cósmica, sob o tom envolvente das constelações, duas vozes fundem-se pela impossibilidade maior de retardar a sua ligação, união química e singular. Superiores à força da vida mundana, duas vozes ofereceram-se à existência que apenas aquelas duas vozes poderiam dar e receber naquele instante.
Cumplicidade, musicalidade, transparência, partilha.
Fica a saudade permanente entre a pele das duas vozes, atadas por um sopro ténue e sublime.
Ancoram ocasionalmente uma na outra, em registos díspares, mas o tom é sempre suave, meigo, porém quente e inebriante. Afeiçoam-se momentaneamente ao escutarem-se.

Uma voz silencia-se, outra regressa ao lar, com a certeza de que voltarão a enlear-se, tranquilamente, no sopro de um novo diálogo.

Maturidade


Pensamentos partilhados, conversas interrompidas por silêncios desconfortáveis perante o confronto.Palavras por dizer. Acções por concretizar.
Decisões tomadas no silêncio da tua ausência. História enterrada na areia de uma praia distante, para entrar leve no ano de todas as mudanças.
 
A necessidade de normalidade. Fácil de entender.

É o fim. O decisivo fim do qual nem o início nem o desenrolar conseguimos descortinar, entender. Será que algum dia iremos perceber tudo isto que se passou ou o que nos liga verdadeiramente?

O fim. A tristeza de um fim necessário para que as vidas prossigam a sua rotina, sem atropelos. O fim sem vontade de acabar. O final de uma coisa que não sabemos explicar, obrigado a controlar, por mais tempo que passe.
Resta-nos lembrar os momentos, as conversas. Apenas isso poderemos guardar, sem risco de serem, de dentro de nós, roubados.

A tristeza com lágrimas. Decisão convicta como nunca antes. Maturidade, disseste. Tristeza madura, que secou o pranto, que o mar levou naquela madrugada cheia de estrelas e na qual a lua, propositadamente, brilhou tanto como brilhava em todos os nossos encontros, iluminando todo o negro céu. Para que eu não esquecesse. Para que te lembrasse.

Durante algum tempo, habitaste o meu pensamento, não conseguia tirar os olhos dos teus, mesmo quando não estavas comigo. Era confuso, estranho. Muito estranho. Por ser contigo.
Apesar de continuar a sentir que uma parte de ti me pertence. Talvez o teu mais verdadeiro Eu seja um bocadinho meu, também. Anos de partilha, centenas de palavras escritas, revelações, apoio mútuo, ajuda, situações conversadas, momentos intocáveis, que apenas poderei perpectuar em linhas escritas, como estas.

Não foi paixão ou amor. Não fora dos nossos momentos. Aí sim, todos os sentimentos mais nobres, mais simples, selvagens, mais bonitos, vinham à tona. Mas só aí. Agora tenho, disso, a certeza. Um Amor apenas materializável quando os nossos rostos e os nossos corpos se fundiam, apenas num abraço ou num beijo, mesmo que não tirássemos a roupa. Até sem despirmos, a fusão era inacreditável! Não consigo deixar de me espantar com tamanha beleza...
 
Tudo o resto foram confusões, resquícios do reencontro de um companheiro antigo, congelado num passado, que a alma agora reconheceu.

O fim pela necessidade do reinício. O fim de todos os finais para que a vida se revire e traga uns olhos, um corpo que possa, finalmente, viver e desfrutar.

Apenas permanece o medo de que, quanto mais tempo afastados, maior a saudade e mais forte, explosivo, seja um inevitável reencontro futuro. Estaremos iguais? Estarás igual? E eu, estarei igual? Se o tempo intensificou o que sempre existiu, se o tempo fez crescer a ligação, como será daqui para a frente a ausência provocada pelo afastamento, pela primeira vez, forçado? Como será continuar, agora, no silêncio? Como e onde ficará a nossa amizade?

A energia que emana dos nossos corpos, das nossas almas, para o exterior, que se sente no ar, que se respira, que se cheira, extinguir-se-à em algum momento da nossa existência actual?

O tempo. O que fará o tempo por nós? Esquecer-nos-à? Fará com que nos esqueçamos um do outro?

O fim. Um fim que não se quer. Um fim, mas não um fim qualquer. O culminar de um ciclo que se fecha por necessidade, com alguma dficuldade, com uma inevitável e, talvez, surpreendente dor. Que se encerra, não por ser melhor assim, mas por ser a única forma de continuar a viver.

Gostava de poder pintar-te um dia

Gostava de poder pintar-te um dia... Gostava de pintar tudo o que vejo e não apenas o que sinto. Mas tu, especialmente. Deve ser para poder guardar-te para sempre.
Mas não encontro o jeito para pintar rostos ou corpos.

Quando tento, saem sempre deformados, ou estranhos, ou imperfeitos. Para pintar-te, teria de conhecer todos os traços do teu rosto, todos os contornos do teu corpo.

Para poder pintar-te, tinhas de te mostrar inteiro para mim, para que nenhum pormenor me escapasse.
Gostava de poder pintar-te um dia, mas ainda não lhe colhi o jeito. Por enquanto, apenas posso pintar-te com palavras. É que assim, é muito mais fácil. A capacidade de pô-las numa figura, só terei quando puder olhar-te fixa e profundamente, a cada dia, sem medo, nos olhos, sem que desvies o olhar.

Essa perícia só surgirá com a tua ajuda, quando quiseres ser o meu modelo de eleição, que eu possa contemplar de dia e de noite, sem que me fujas.

Se não for assim, nunca poderei fixar as linhas do teu rosto ou os traços do teu corpo.

Gostava de poder pintar-te um dia, para, quem sabe, guardar-te para sempre.

Aquele bar


Não chovia. O sol desaparecia no céu, embora desperto, embora fosse Inverno.
Cheguei, e tu já lá estavas. Como sempre. Sentado num banco de madeira escura, ao fundo das escadas, virado para o mar. Como sempre. Embora com as costas de frente para mim, viste-me chegar.

Eu, imóvel ao cimo da escadaria, contemplava o horizonte encoberto, onde ansiava estar, para me perder, para me soltar em toda a existência daquela paisagem que me era oferecida por uma natureza tornada viva, com o embater da água nas rochas, pintando o céu. Vi-te. A tua boca abriu-se num sorriso e a tua mão tacteou insistentemente no banco escuro em que te sentavas, como um convite a descer. Sorri, em resposta.

Desci. Estava já perto de ti. Conversámos o que nunca imaginámos. Muito ficou por dizer.

Olhámos à direita e o dia caía suavemente, contrariado. Do lado esquerdo, o céu permanecia azul. Escuro. Passaram pássaros, voando sobre nós, perdidos em bandos, sós. Eu não conseguia distinguir umas das outras. Mas tu conseguias. Como sempre. Ensinaste-me os seus nomes e como voavam. Soube, finalmente, diferenciá-las e o meu olhar perdeu-se nessa magia de pairar sobre os corpos terrenos, sob os espíritos supremos.

Contei-te sobre os meus anseios, as minhas vontades e as minhas mais profundas ambições. Senti-me serena.

Enquanto o dia se desmanchava, formava-se sobre nós uma tela imaculada e singular, onde o sol tornava o céu ocre e as nuvens o transformavam em dia e, simultaneamente, noite. Tudo se fortalecia em mim. Tudo em sonho. Tudo é afecto. Tudo é paixão. Tudo é segredo. Tudo em segredo.

Encontre a sua própria história

Várias Vidas
SINOPSE

Várias Vidas, é um livro recheado de histórias reais, de encontros e desencontros entre pessoas diferentes e pessoas iguais. As várias vidas de mulheres e de homens que conheço. As mentiras, as verdades. As duplas vidas, os círculos de vidas onde tantos se encontram e desencontram, numa sociedade em crescente decadência. Encontre a história da sua vida. - Maria João Almeida.

Lover - Parte I

Não venhas até às escadas, pensei, enquanto saía de casa para te encontrar. Não espreites. Não vás à janela. Fica, apenas, à minha espera, que chegarei à tua porta.

Com a música bem alta ao longo do caminho, nervosa, como se fosse a primeira vez que te fosse ver. Como se fosse um primeiro date. Mas não era. Já perdi a conta das vezes que nos envolvemos. E é cada vez melhor. É cada vez mais perigoso.

Pelo caminho, sorria, ria muito sozinha. Estava radiante, mesmo sem saber o que me esperava. O que nos esperava. Somente o saber como me sinto a cada e de todas as vezes que estamos juntos. A harmonia, a beleza, os rituais só nossos, mas antigos, que o tempo não esqueceu. (...)

integralmente em breve, no livro: "Várias Vidas Short Stories 1995-2005"